A bailarina


Ela tinha um modo tão doce de mexer o quadril enquanto circulava pelo quarto. Não importava o ritmo ou se existia música tocando, entrava numa espécie de transe e começava a brincar de bailarina enquanto andava na ponta dos pés descalços de um lado para outro. Não era um jogo de sedução, mas a única expressão de liberdade que ela conhecia.

E ele olhava admirado aquilo tudo.

O cabelo dela, preso despreocupadamente, exibia mechas soltas que enfeitavam a moldura de seu rosto com uma perfeição quase que provocada. Os lábios carregavam um tom rosado excessivo e pareciam cobrar beijos o tempo todo, numa atitude sutilmente insaciável.

E ele ansiava por interrompê-la, mas não se movia.

O silêncio dominava a realidade e ela rodopiava a ponto de flutuar de vez em quando. E mordia os lábios; e fingia tocar o vento com a ponta dos dedos; e fechava os olhos como se não estivesse sendo observada. Ou o fazia justamente por isso. Sua expressão era leve, como a de quem conquista o máximo que pode na vida e, enfim, procura o descanso. Podia sorrir ou chorar enquanto seguia sua melodia, com uma intensidade de sentimentos captada por poucos.

E ele sentiu o coração apertar.

De repente, ela pareceu despertar de seu universo e errou o passo. Riu de si mesma, olhou para ele por alguns segundos e sorriu, como quem pede desculpas pelo deslize. Em seguida, foi até a janela, afastou a cortina e deixou um pouco de luz entrar. Seu perfume atravessou o espaço e fixou no ar. Vestia uma camisola fininha, quase transparente, que, de encontro à luz do sol, mostrava os detalhes de seu corpo com nitidez.

E ele começou a chorar.

No mesmo instante, lá estava ela, novamente, movendo o quadril. Arrepios e um pouco de ousadia a fizeram soltar o cabelo e deixar que a gravidade cuidasse do resto. No minuto seguinte, revelou-se pele e lingerie, com um infinito de amor a espera dele, a quem ela resolveu devotar toda sua atenção, finalmente.

E ele, um pouco incrédulo e ansioso, aproximou-se dela e pediu, quase implorando:

– Nunca some da minha vida, tá? Eu amo você. Tanto… tanto!

E, como prometido, ela não sumiu. Mas não entendia como ele, em um amanhecer de fim de verão, resolveu deixá-la dançando sozinha e nunca mais voltou.

um dois cinco

Ela ama, sonha e caminha na Paulista
Um amor solitário, traduzido em sonho ingênuo
Feito a passos largos
E que fugiu, no fim, que fim?

‘Let me sing you a Waltz’
Cantou Celine em Before Sunset
Mas não há pôr do sol, nem valsa
O Jesse tinha razão
É assim que ao fim (que fim?) todos pensam
‘Hey, I’m glad you’re gone’

E confusa e sem opção
Caminha, mas já não sonha, lamenta
E a avenida, com infinitos sinais fechados
Faz seu único destino a Consolação

incógnita

Toca Phoenix no player. Love For Granted. Nessas horas, eu deveria ouvir algo como Franz Ferdinand e seu rock dançante ou Metallica com suas batidas agressivas. Mas eu escolho o que vai me fazer chorar, talvez porque eu posso usar como justificativa para o caso de alguém perceber as lágrimas. “A música é triste!”, responderei.

Mas não é a música. São sentimentos que me provocam, que insistem em me fazer optar por escolhas que eu não quero. Escolhas que vão me machucar. Escolhas que, talvez, machuquem alguém.

São dúvidas, medos, angústias… Coisas que eu evito falar, para que elas não se concretizem.

E eu tento ouvir algo alegre, mas escolho The Smiths. Please, Please, Please Let Me Get What I Want.
Eu tenho a infantil mania de complicar tudo, de achar que a vida sempre me distrai para que eu não perceba que ela quer aprontar comigo. Autossabotagem é a palavra. Eu sempre espero o dia em que vou me decepcionar.

Se eu dou espaço para o que se passa na minha cabeça, talvez eu me arrependa para o resto da vida. E com a ilusão de que fiz o melhor, mesmo com o arrependimento me atormentando dia e noite. Se eu não ceder… vou ter que esperar dia após dia para saber o que vai acontecer. E é disso que eu tenho mais medo na vida.

E eu tento seguir (e me segurar) ao som de For No One, dos Beatles. Mas como conseguir isso ouvindo uma das músicas mais tristes dos garotos de Liverpool?

do medo de ser feliz

Prendeu a respiração para evitar falar o que sentia. Ele insistiu por curiosidade e porque não gostava de segredos.

Após toda a resistência do mundo, ela falou. Mas falou com um quê de tristeza mais forte que o habitual e ele achou que aquilo parecia uma despedida.

Mas não era.

– É que eu tenho tanto medo de amar você. – esquivando-se da proteção do abraço dele, não porque queria, era involuntário.
– Mas amar é algo tão bom, querida. – insistindo com um leve toque nos cachos dela.
– Eu sei. Só é difícil acreditar que, sendo realidade, eu não vá sofrer. – e fixou o olhar no horizonte, tentando segurar as lágrimas que queriam dominá-la.

E ele a olhou com tanta ternura, mas ela nem percebeu.

Não era a realidade que a fazia sofrer, mas a ilusão de realidade que ela sempre criava para si. A sua maior determinação na vida era fugir do amor e, até então, ela conseguia escapar com maestria.

Porém, azar do medo.
E sorte dela que ele não desistiu.

Too busy to myself…

Amanhã eu tenho tanta coisa pra fazer.

Sabe, nada tão saudável. Não vou acordar cedinho, nem me alongar, correr ou nadar. Meu café da manhã será fora de hora e não terá frutas, nem suco. Me entupirei de cafeína para curar a ressaca de uma noite não dormida.

Nada farei de tão musical também. Não vou aprender a tocar gaita de novo, nem cantar no chuveiro… Não vou enviar uma música para um amigo, nem baixar novos discos. Muito menos dançar. Só vou ouvir Beatles, porque sem eles meus dias não seriam meus e porque, para mim, é uma lei ouví-los.

Também não vou fazer algo tão divertido, como jogar videogame com o irmão, escrever cartas para os amigos, ler um livro do Saramago ou a biografia dos Beatles, mandar mensagem de texto para um cara especial, ir ao cinema ou fotografar, testando sempre a opção macro.

Ainda vai faltar-me coisas saborosas, como comer sauduíche de peito de peru e presunto do Subway, tomar açaí e gastar uma grana com trufas de torta alemã para a família. Provavelmente não vou comer lasanha também, nem tomar capuccino. Nem estará no cardápio a salada que minha tia faz, nem o milk-shake da minha mãe, nem o cuscuz da minha vó.

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A ligação

Não se contentou com a última vez em que a viu. Ora, ela bateu a porta em sua cara recusando-se a ouví-lo com a desculpa que no momento tinha muito o que fazer. Resistiu por dois dias em telefoná-la, em vê-la, em ler os lamentos que ela publicava nas redes sociais. Tentou, mas já não aguentava, e decidiu que precisa dizer-lhe coisas, palavras que só ela merecia ouvir por ter sido tão rude e impaciente com ele. Então, pegou o telefone e discou apressado aquele conjunto de números que totalizavam 43.

Se odiaram na primeira vez em que se viram. Na verdade, criou-se um ressentimento estranho porque ela o olhou e não sorriu e porque ele a olhou demais. Até onde se sabe, nunca tinham trocado palavras nem olhares, aquele foi o primeiro registro de contato entre ambos e, por isso mesmo, ela não podia ficar com aquela sensação somente para si. Então, voltou-se para a melhor amiga e alertou:

– Olha lá o cara com a camisa vermelha.
– Tô vendo, o que tem? Gostou dele, né? – indagou a amiga, que tinha olhos amendoados, cheirava a doce e não sabia fazer piada.
– Claro que não, ficou louca? Ele é um metido, se você quer saber.
– Por que diz isso? Pra mim ele é gato e faz teu estilo.
– Quê? Ele… ele… ele é um metido, nada a ver comigo. – E finalizou o papo, com visível rancor do que a amiga havia dito.

Passaram-se dias quentes e estressantes até que se vissem novamente. Se encontraram em meio a prateleiras da biblioteca, mas dessa vez não se detestaram. O cheio de mofo dos livros a fez espirrar e ele, que achava obrigatório calar-se para preservar o silêncio do ambiente, se aproximou, murmurou desejos de saúde e sorriu. Paralizada e com o nariz levemente vermelho, ela só conseguia ver a covinha que se formava no lado esquerdo do rosto dele.

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A razão de só conseguir amar a ideia de ser jornalista

Estou quase criando uma teoria que revela que os nossos sonhos profissionais da infância pouco se concretizam. A maioria dos meus amigos queriam ser médicos, veterinários, aeromoças ou atrizes de Hollywood. Nenhum deles conseguiu.

Eu, por exemplo, queria ser patinadora de supermercado. Meu Deus, aquilo era o ápice do sucesso para mim, você podia ser veloz, correr riscos e sempre se destacar num ambiente consumido por gente de todos os tipos. Eu achava mágico (ainda acho, não minto) como as moças e rapazes conseguiam desviar tão rápido de caixas, carrinhos, pessoas e prateleiras. Sempre cerrava os punhos achando que eles iam bater, mas não, eles conseguiam realizar um movimento preciso e continuavam a seguir firmes com toda a sua leveza sobre os patins. Eu nunca consegui nem aprender a andar com patins. Fracasso total.

Aí, me restou uma série de opções. Pensei em ser economista, engenheira civil ou arquiteta, mas um 5 em Matemática no 1º ano me derrotou e eu desisti disso tudo. Podia já ter criado meus próprios programas de computador se gostasse de Física, porque aí teria cursado Ciências da Computação, mas virei ativista cibernética aos 17 anos e quase me filiei ao Greenpeace. Pronto, pensei em cursar Ecologia. Mas não.

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Pierrô e Colombina

Todo ano era a mesma coisa. Só desejava adormecer e retornar quando se restabelecesse a normalidade. Afogada em livros e filmes, mantinha distância do mundo carnavalesco e de todos aqueles que o amassem mais que a si mesmos. Preferia limonada à cerveja e um bom sono a qualquer movimento corporal que lembrasse dança. Foi capaz até de jurar que mudaria para a Argentina. Ou Londres. Ou um universo paralelo e triste em que não existisse carnaval. Mas tinha um segredo. O trio Pierrô, Colombina e Arlequim amoleciam seu coração.

Do outro lado da cidade, como em todo ano, havia o frevo das sombrinhas coloridas, a chuva de confetes e serpentinas, os beijos eufóricos e cheios de calor festivo. Atmosfera repleta de diversidade compartilhada em um trecho urbano qualquer. E ele, que prezava a intensidade e rapidez das coisas e tinha o carnaval como a festa que mais lhe fazia gosto. Em quatro dias podia ser despreocupado como em nenhuma época do ano. Além do que, todos os seus pecados, por pacto social, eram sempre esquecidos e infinitamente perdoados. Mas também tinha um segredo. Queria abandonar a folia.

E como sempre alertam os avós, o destino é um bicho bem traiçoeiro às vezes.

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Três gelos e um segundo

Olhou fixamente num ponto e desatou a falar. Queria resolver tudo de uma vez, não aguentava mais toda a angústia de reprimir seus sentimentos e opiniões e desgostos e mais todas aquelas coisas que ele não sabia explicar, mas sentia intensamente por ela.

– Eu sei que disse que não me envolveria… Tentei, mas tô cansado de fugir de mim mesmo. Sei lá… mas eu diria assim, que apesar de tudo, esse meu carinho, estranho e pouco nítido, na verdade, sabe, é todo pra você.

Silêncio.

– Olha, eu devia ter falado antes. Não pense que quero confundi-la ou enganá-la. Eu… eu… não parece, mas…

Silêncio.

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Sobre tudo, a janela

Gostava de sentar perto da janela no ônibus. O vento, a paisagem, o som… precisava estar em contato com a vida o tempo todo e, para ela, a vida podia ser alcançada ali, através do espaço que a breve abertura de janela lhe cedia. Só não sabia como, então repetia esse gesto como um ritual, porque acreditava que uma hora a resposta viria.

Como em todos os dias, sempre na ida e volta para casa, adotou a janela de sua preferência e ali ficaria até seu destino se ele, humildemente, não tivesse sentado ao lado.

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