domingo

Recordo a cor dos olhos dele contra a luz. Um castanho quase mel, tão bonito durante o fim de tarde ou sob a luz do bar. Eu devo ter os olhado insistentemente e ele, por certo, deve ter percebido, pois lembro de ter falado qualquer coisa sem nexo porque queria me proteger de falar o quanto eu gostei de estar ali. Ele riu. Nós rimos. E, pela janela, dava pra ver o mar numa calma que beirava a paz. Era como eu me sentia naquele domingo incomum. Pra mim, domingos sempre representavam tédio, independente do que eu fizesse. Aquele não.

***

Quase cinco da manhã e um sono perdido. Nessas horas, cultivo o hábito de relembrar histórias por medo de esquecê-las. Uma mania que, por vezes, considero loucura. Ou, no mínimo, uma forma torta de apreciar a vida.

***

Nisso tudo, penso: quanto levarei até amar outro domingo?

previsão do tempo

Hoje amanheceu um céu lindo, de algodão. O sol calmo, morninho, entrou pela fresta da janela e me fez lembrar das manhãs que eu acordei a seu lado. Naquele tempo era acordar, ter nosso tempo de amor, depois você saía pro banho e, quando voltava, eu já adormecera novamente. E você assistia meu sono, porque sempre que eu despertava, tinha seus olhos verdes me fitando.

Mas o tempo passou e logo eu percebo que já é noite. Com ela, cai a chuva que tanto esperei por dias e, engraçado, volto a lembrar de você. Lembro daquele dia em que nós fomos a praia caminhar. Você disse que Ponta Negra era tão bonita, que podia morar lá. Eu te abracei, te cobri de beijos e você cismou de me pedir pra subir meus pés nos seus, que você ia caminhar por nós dois. Quase caímos. Nesse dia choveu. E eu não me importei com a roupa molhada, nem se eu ia ficar resfriada.

Ainda bem que minha memória é boa e guardou tudo isso, me impedindo de esquecer.

hora de dormir

Está um silêncio danado
Vez em quando um som de vento
Um longe passar de carros
Agora cantam os galos
Mas já de novo se faz o silêncio

Gosto dessa ausência de zunido
Meu corpo se estira na cama
A calma me faz bem aos ouvidos
Minh’alma, um quê de esperança
O som do que sinto é tão bonito

Engraçado
Eu até que neste instante gostaria
Do seu riso interrompendo minha calmaria

Tenho essa coisa absurda de gostar do absurdo.

catatonia

Vejo os pingos da chuva e lembro do teu choro mais honesto. Você ali indefeso, falando da tua maior saudade, com um nó na garganta, tanta solidão.

Meu peito ficou numa angústia, eu querendo te ver feliz, enxugando teu pranto, oferecendo-te um ombro e um café. E no resumo disso tudo, eu te oferecia muito mais do que devia, te dava amor a cada movimento que minhas mãos faziam em teu cabelo. E na raiz, eu sabia que tu se entregava. Ilusão.

Sempre manti o raciocínio louco de que o amor nascia nesse aninhado que é um cafuné. Eu queria acreditar que tu me deixavas tocar teus cabelos porque entendias isso. Meus pensamentos nunca foram lógicos, óbvio.

Mas, num rompante, bebeste o café em um só gole e mudaste de assunto emendando palavras que eu não podia acompanhar. Largaste-me ali, aproveitando que eu não sabia reagir. Fiquei muda, mesmo tagarelando nas entrelinhas.

Então olhei para a vidraça, a garoa havia cessado e, enquanto eu ouvia os teus passos subirem a escada, silenciosamente me inundava. E me senti ridícula.

Ainda me sinto.

temperatura

Com impiedosos raios
O sol me arde os olhos
Faz tudo ficar azulado
Me queima a pele
Derrete-me o cérebro
Cria um desgasto

Com gélida indiferença
Você me frita a mente
Distorce os fatos
Carboniza meus brios
Incendeia-me o juízo
Gera um desgosto

É por essas e outras que eu preciso de calor.

Tristes Dúvidas

1.

Há dois anos Patrícia falava sobre as mesmas decepções com o psicólogo. Sobre as dores que não curavam, mas que, também, não doíam. Até que um lampejo de lucidez a pegou de surpresa na saída da terapia numa segunda-feira cinza e morna e ela indagou-se:

Será que a dor se fez parte de mim a ponto de ser doloroso livrar-se dela?

***

2.

Clara e Lola, amigas inseparáveis desde a escola, conversavam sobre o almoço do dia, quando Clara interrompeu o assunto com um desabafo:

– Sinto-me triste! Já chorei tanto hoje, mesmo sem querer, o que faço para superar, Lola?

– Não sei, queria chorar como você, sentir alguma coisa, mas continuo a sentir nada sobre a vida. – respondeu. Vamos almoçar no chinês? Lá a gente conversa melhor. – devolveu para Clara, que nem percebeu e perguntou de novo:

– O mais triste é aquele que sente tristeza ou quem não a sente, Lola?

Com olhos estáticos, Lola engoliu a seco a verdade e perdeu a fome.

***

3.

Esperou ele fechar a porta e ficou ali olhando a TV desligada, enquanto aceitava o fim de mais um relacionamento. Tinha se conformado em viver histórias que não davam certo, mas, apesar da falta de protestos, sempre ficava com uma dúvida que lhe imprimia a certeza de que a situação ia se repetir:

Quando meu coração sarar, vou ter mais coração ou cicatriz?

E aí, tudo bem?

Era 20 de novembro. O telefone tocou e, então, ela passou pela porta giratória, viu o carro ali parado, ele a esperando e, meio que sem saber como se apresentar, deu-lhe um abraço enquanto perguntava: “e aí, tudo bem?”.

Ele abriu o maior sorriso do mundo. Sim, estava.

***

O telefone tocou quando ela já havia deitado na cama e puxado o cobertor até cobrir a cabeça, como se estivesse em um casulo. Em agosto tem sempre aquele frio exagerado, por causa dos ventos fortes e das chuvas intermitentes.

Pensou duas vezes, mas pegou o telefone, porque era ansiosa e não conseguia ficar sem saber quem a telefonava naquele momento. Levantou rápido e, quando olhou para a tela do iPhone, sentiu sua vida voltando dois anos e um silêncio desesperador tomar conta de seu quarto.

Atendeu. Do outro lado da linha, a voz que ela não queria mais ouvir perguntava: “e aí, tudo bem?”. Não mais.

***

Colocou The Turtles no repeat. Happy Together tocava até enjoar, atravessando a janela do apartamento, espalhando amargura e ironia pela cidade. A campanhia tocou e o vizinho que mal a conhecia… “e aí, tudo bem?”.

Era 20 de novembro.

A bailarina


Ela tinha um modo tão doce de mexer o quadril enquanto circulava pelo quarto. Não importava o ritmo ou se existia música tocando, entrava numa espécie de transe e começava a brincar de bailarina enquanto andava na ponta dos pés descalços de um lado para outro. Não era um jogo de sedução, mas a única expressão de liberdade que ela conhecia.

E ele olhava admirado aquilo tudo.

O cabelo dela, preso despreocupadamente, exibia mechas soltas que enfeitavam a moldura de seu rosto com uma perfeição quase que provocada. Os lábios carregavam um tom rosado excessivo e pareciam cobrar beijos o tempo todo, numa atitude sutilmente insaciável.

E ele ansiava por interrompê-la, mas não se movia.

O silêncio dominava a realidade e ela rodopiava a ponto de flutuar de vez em quando. E mordia os lábios; e fingia tocar o vento com a ponta dos dedos; e fechava os olhos como se não estivesse sendo observada. Ou o fazia justamente por isso. Sua expressão era leve, como a de quem conquista o máximo que pode na vida e, enfim, procura o descanso. Podia sorrir ou chorar enquanto seguia sua melodia, com uma intensidade de sentimentos captada por poucos.

E ele sentiu o coração apertar.

De repente, ela pareceu despertar de seu universo e errou o passo. Riu de si mesma, olhou para ele por alguns segundos e sorriu, como quem pede desculpas pelo deslize. Em seguida, foi até a janela, afastou a cortina e deixou um pouco de luz entrar. Seu perfume atravessou o espaço e fixou no ar. Vestia uma camisola fininha, quase transparente, que, de encontro à luz do sol, mostrava os detalhes de seu corpo com nitidez.

E ele começou a chorar.

No mesmo instante, lá estava ela, novamente, movendo o quadril. Arrepios e um pouco de ousadia a fizeram soltar o cabelo e deixar que a gravidade cuidasse do resto. No minuto seguinte, revelou-se pele e lingerie, com um infinito de amor a espera dele, a quem ela resolveu devotar toda sua atenção, finalmente.

E ele, um pouco incrédulo e ansioso, aproximou-se dela e pediu, quase implorando:

– Nunca some da minha vida, tá? Eu amo você. Tanto… tanto!

E, como prometido, ela não sumiu. Mas não entendia como ele, em um amanhecer de fim de verão, resolveu deixá-la dançando sozinha e nunca mais voltou.